A escritora espanhola Alana S. Portero vive uma sucessão de bons momentos. Tudo começou em 2022, quando seu romance Mau Hábito foi a sensação da Feira do Livro de Frankfurt – antes mesmo de ser publicado em espanhol, teve seus direitos vendidos para mais de 12 países (no Brasil, saiu em dezembro passado pela Amarcord, novo selo do Grupo Editorial Record).
Os bons ventos continuaram em julho de 2023, quando o cineasta Pedro Almodóvar cutucou o político conservador Alberto Núñez Feijóo, líder do partido oposicionista espanhola, a ler Mau Hábito. “Para que tenha ideia do grau de sofrimento, dor e risco enfrentado por alguém que nasce no corpo errado”, disse o diretor. Finalmente, em novembro, Portero foi um dos nomes mais festejados da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, onde recebeu uma quantidade exponencial de abraços e beijos.
A euforia rodeia um livro que, escrito em primeira pessoa, acompanha a infância e adolescência de uma menina trans cujo corpo descobre ser inabitável. A trama começa nos anos 1980, em um bairro operário de Madri marcado pelo consumo de heroína, e chega até os 1990, retratando cotidiano das travestis.
A história carrega traços pessoais. Mulher trans, Portero também passou a adolescência em um subúrbio operário da capital espanhola e, ainda que não considere uma obra autobiográfica, Mau Hábito foi escrito a partir de traços de inspiração, memórias e anotações que ela reuniu ao longo de quase cinco anos.
Sua intenção era evitar que o livro fosse tachado como um romance de nicho para defender direitos que são universais. Assim, as mulheres trans de Mau Hábito, que também são profissionais do sexo, são uma homenagem às mulheres mais abusadas da história recente. “Nada é mais literário do que a dor, o prazer, o medo ou o desejo”, afirma Alana S. Portero em entrevista por e-mail, ela que, aos 46 anos, é formada em história na Universidade Autônoma de Madri, o que permite unir com desenvoltura mitos gregos e contos medievais com o mundo pop.
MARIE CLAIRE É um livro que conta coisas tristes, mas também é um livro capaz de dar esperança. Como foi o trabalho de escrita para equilibrar esses sentimentos?
ALANA S. PORTERO Ficou claro desde o início que eu não iria contribuir com mais uma história em que o trauma decide o destino final de um personagem. A escuridão da história é o contraste perfeito para fazer brilhar a esperança, que é a verdadeira dinâmica norteadora do personagem principal.
MC Você escreve com amor sobre as emoções do corpo. Como você explica suas metáforas corporais? O olhar dos outros sobre o nosso corpo nos define?
ASP Tudo o que nos acontece nesta vida reflete em nosso corpo e tudo pode ser contado a partir daí. Venho do teatro e sou profundamente stanislavskiana (referência ao diretor e ator russo Constantin Stanislavski). Acredito que o corpo precede a emoção. Antes de uma emoção passar por nós, algo acontece ao nosso corpo; se quisermos, ele aquece, se tivermos medo, ele treme. No palco é muitas vezes o corpo, a ação física que invoca as emoções. Além disso, nada é mais literário do que a dor, o prazer, o medo ou o desejo.
MC Por que é importante para você falar sobre a violência sofrida pelas famílias trabalhadoras que não têm tempo para afinar seus afetos?
ASP Porque as histórias da classe trabalhadora costumam ser contadas a partir de um certo “turismo de classe” e importava para mim que não fosse assim, era preciso uma visão horizontal porque é a minha própria classe. A expropriação, o extrativismo capitalista, tudo isso não é só material, mas algo que rouba tempo. As ferramentas emocionais são esmagadas pelo cansaço, a capacidade de relacionamento é altamente condicionada pelo estresse, pelo esgotamento, pela extensão do trabalho fora da jornada de trabalho, pelo medo da precariedade.
MC Você se dá permissões diferentes ao contar histórias no papel?
ASP Normalmente escrevo com bastante liberdade. Não estou condicionada por nenhum meio além do fato de que o tom de uma coluna de jornal não é o mesmo do de uma obra narrativa, mas escrevo sempre o que quero. Eu me dou total permissão.
MC Você acredita que romancistas têm uma obrigação moral para com seus personagens e seus leitores?
ASP Não. Temos a obrigação de escrever boas histórias e sempre honestamente, de não provocar quem nos lê. Nada mais.
MC Você já aprendeu algo com uma resenha de livro ou com um ensaio sobre seu trabalho?
ASP Sempre que são criados com respeito, levo-os em consideração, leio-os com atenção e tomo notas. Mas, se detecto um tom malicioso, rude ou depreciativo – e tenho um bom olho para ver isso acontecer –, paro de ler imediatamente. Aceito críticas, não lições ou ataques.
MC Você considera que é necessária estabilidade emocional para poder escrever? Ou você pode começar a trabalhar independentemente do seu humor?
ASP No meu caso, é importante escrever com uma certa paz e calma. No meio de turbilhões emocionais, faço anotações, mas não sento para escrever. Isso me condiciona demais e não para melhor. Preciso ter emoções digeridas para usá-las como combustível literário. Mas desenvolvo meu trabalho só quando estou em paz.
MC Quão importante é a perspectiva do narrador?
ASP Muito importante. É o que acaba movimentando a história e é o único companheiro do leitor. Não importa se diz a verdade ou mente, ele é o pilar sobre o qual tudo repousa. Não acredito que perspectiva e verdade estejam ligadas; na verdade, narrativas muito interessantes emergem de uma perspectiva enganosa.
MC O mal e a dor são fortes aliados na literatura? Que importância esses dois têm em sua literatura?
ASP Tanto o bem e o prazer, como qualquer emoção ou experiência humana. A literatura prospera com eles. Mas sim, estes dois em especial são muito eficazes na construção de narrativas sugestivas. Sou uma grande leitora de literatura gótica, como por exemplo o irlandês Sheridan Le Fanu e os ingleses Ann Radcliffe, Horace Walpole, que usam a dor e o mal quase de forma satírica ou caricatural. Mergulhar em personagens malignos me traz total liberdade e contar a dor com precisão e delicadeza é o caminho mais elevado para alcançar o poético.