Como hipster de respeito, Wes Anderson não se contenta em Ilha de Cachorros a evocar Hayao Miyazaki, referência da animação japonesa para os animadores em atividade hoje em Hollywood. Anderson presta uma homenagem ao Japão a partir de uma matriz anterior a Miyazaki: seu novo filme é uma carta de reverência a Osamu Tezuka.
Ilha dos Cachorros concilia temas tradicionais do pop oriental – futurismo com pegada distópica, memórias de guerra, cibertecnologia – na trama de um garoto, Atari, que se atira na missão de encontrar seu cão perdido. O contexto e as circunstâncias são o diferencial; a tal ilha do título é um lixão na cidade de Megasaki onde todos os animais foram exilados, depois que uma epidemia misteriosa atingiu de vira-latas a cães de raça.
Atari surge em cena com um traje de piloto e, depois de um acidente, caminha claudicante pela ilha como um ciborgue avariado – movimentos que parecem mais duros por conta do stop-motion e também da encenação típica de Anderson, de gestos e trânsito calculados. Traços do Astroboy de Tezuka se pronunciam em Atari, órfão endurecido pela perda que luta contra as lágrimas quando elas surgem, e que o diretor registra sempre no plano-detalhe. Nos momentos de animação 2D em Ilha de Cachorros (como em alguns flashbacks, hipertextos e no material que passa na televisão) que lembram o visual dos animes de Tezuka, a homenagem fica mais demarcada.
Esse motivo cinefílico não é tão comum no cinema de Anderson, embora ele transite sempre por gêneros diferentes a partir de referências pontuais (como a evocação das comédias de Ernst Lubitsch em O Grande Hotel Budapeste). A relação com Tezuka em Ilha de Cachorro se parece mais com a aproximação que Anderson fez com Satyajit Ray em Viagem a Darjeeling: a homenagem aparece nos temas mas também em especificidades (como as canções originais de Ray que Anderson resgatou para o filme).
Se, na comparação dos filmes de Anderson, Ilha de Cachorros parece um esforço mais cerebral do que intuitivo ou emocional, talvez seja porque essa questão da homenagem permaneça em primeiro plano, assim como havia acontecido em Viagem a Darjeeling. Como Ilha de Cachorros também mantém seu foco no artesanato – o filme parece o tempo todo chamar atenção para a feitura do stop-motion, para o processo da animação tradicional, para os experimentos com movimentos e ritmos – o resultado pode soar mais calculado do que o normal (dentro do espectro de “controle” que já se assume nos filmes cheios de TOC geométricos do cineasta). Soa, pelo menos, mais calculado do que O Fantástico Sr. Raposo, um filme que transcende a dureza do stop-motion e é um dos mais expansivos e “selvagens” de Anderson.
No caso de Ilha de Cachorros, o emocional transpira mais nos elementos “para fora” do filme: nas brincadeiras com a cultura japonesa (que já correm o risco de ser entendidas como apropriação cultural) e no próprio exercício do stop-motion, que neste filme se apresenta a nós menos como uma narrativa imersiva do que como um enorme esforço coletivo de conciliar a musicalidade e a cadência (desde a abertura com os tambores) com a correria da trama aventuresca. Se os filmes de Wes Anderson já têm um evidente apelo para designers de produção, figurinistas e cenografias, Ilha de Cachorros pode antes de tudo ser uma experiência especial para quem pensa e faz animação.