Você deve se lembrar: em uma madrugada de outubro de 2013, um grupo de ao menos cem ativistas invadiu o Instituto Royal, no município de São Roque, em São Paulo, arrombou gaiolas e resgatou quase 200 cães da raça Beagle, usados em testes da indústria farmacêutica e de cosméticos. O objetivo era verificar em seres vivos a existência de possíveis reações adversas aos ativos dos produtos, como vômito, diarreia, perda de coordenação motora e convulsões. A ativista Luisa Mell, claro, entrou na briga, e apenas um dos seus posts no Facebook que tratava do assunto teve mais de 50 mil compartilhamentos e 3 mil comentários. Além dela, personalidades como Ivete Sangalo, Yasmin Brunet, Isabeli Fontana, entre outros, se manifestaram. Depois do resgate, todos os cães foram colocados para adoção e ganharam um novo lar. O Instituto Royal encerrou as pesquisas e fechou as portas no mesmo ano.
Desde então, a prática vem perdendo a força no Brasil e no mundo – uma vez que os mesmos resultados podem ser obtidos em testes in vitro, não faz mais sentido que sejam usados seres vivos para isso. Não à toa, uma das principais macrotendências apontadas pelo bureau WGSN para 2019 é o “consumo ético”. No mercado da beleza, além de menos testes em animais, isso significa, essencialmente, o uso de matéria-prima vegetal e orgânica. Para o consumidor, são produtos taxados de veganos, cruelty free, naturais ou orgânicos, de acordo com cada especificidade (leia box). Esses predicados não são exatamente uma novidade na indústria (empresas como Natura, The Body Shop e Weleda investem nesse método de produção desde sua concepção), mas grandes fabricantes e novas marcas também têm investido na tendência nos últimos lançamentos.
Entre as novas marcas que desembarcaram no Brasil com essa mensagem estão a da tatuadora Kat Von D, que vende seus produtos veganos e cruelty free por aqui desde o ano passado. Outro exemplo é a Simple Organic, criada pela ativista ambiental catarinense Patricia Lima também em 2017. A mais recente novidade nesse sentido é o Unna, o primeiro e-commerce brasileiro com foco em produtos de beleza com esse conceito.
Embora nossas prateleiras estejam inundadas de cosméticos que dizem respeitar o meio ambiente, a veracidade dessas informações ainda é incerta. Não existe no Brasil uma lei que os regule ou certifique, como há com os alimentos orgânicos. “Não só a legislação brasileira, mas a mundial é falha nesse controle. Por isso, muitas empresas se aproveitam da moda e lançam produtos sem certificações e sem explicar, de fato, em quais vertentes cada um se encaixa”, diz Márcio Accordi, biólogo geneticista especializado em cosmetologia clínica.
Bastante comum, a prática ganhou até nome: greenwashing (“pintado de verde”, em tradução livre). Para não comprar gato por lebre, Patricia Lima dá a dica: “Não tenha pressa para adquirir um cosmético desses e pesquise. Hoje em dia as marcas são totalmente abertas e costumam responder aos seus clientes muito rapidamente. Se sua dúvida não for solucionada, melhor cair fora”.
Ainda que existam ONGs como Ecocert e PETA, que certificam de forma independente os cosméticos verdes, não há previsão de que a Anvisa crie um guia apenas para atender essa vertente. De qualquer forma, outra grande tendência para os próximos anos mencionada pela WGSN é a valorização de tudo o que é verdade, ou seja…
Mas funciona mesmo?
Outro ponto problemático dos cosméticos orgânicos, naturais, veganos e cruelty free é a sua eficácia quando comparados aos feitos em laboratórios. “O que fica implícito no discurso todo é que a tendência tem muito mais a ver com uma questão de filosofia de vida, sustentabilidade e veganismo do que com a segurança dos cosméticos de fato”, alerta o dermatologista Sérgio Schalka.
De acordo com o médico, os não sintéticos são uma ótima alternativa para pessoas que têm alergias e peles extremamente sensíveis, já que são menos agressivos. “Uma maquiagem orgânica que tem como base ingredientes de origem vegetal e sem uso de pesticidas vai diminuir o impacto ambiental, porém pode ser que ela esfarele, tenha mau cheiro ou escorra, uma vez que depende de condições naturais para ser fabricada”, diz o cosmetólogo Márcio Accordi. “Ainda assim, é importante que existam pesquisas sobre o assunto para atender um mercado específico e que – ainda bem! – só tende a crescer”, diz Sérgio.
O outro lado da moeda
É importante lembrar que um cosmético natural, cruelty free ou vegano não é, necessariamente, menos poluente ou não possui nenhum tipo de resíduo de outros elementos que podem fazer mal para o organismo. “Não há como saber, na verdade, se a fonte do produto é sustentável ou não, uma vez que essas categorias só dizem respeito a não possuir elementos sintéticos ou de origem animal”, afirma Sérgio.
Muitas vezes ainda, a produção desses cosméticos demanda maior gasto de água se comparada com a de um cosmético sintético, por exemplo. De olho nisso, algumas marcas desenvolveram uma nova categoria, a “waterless beauty” (beleza sem água). Na expressão se encaixam produtos que diminuíram o uso ou não possuem água em sua formulação. Entre essas marcas estão a francesa RMS Beauty (que, no Brasil, pode ser encontrada no Dominique Maison de Beauté, em São Paulo), a inglesa Pai e a americana Milk Makeup. Além delas, a L’Oréal se comprometeu em diminuir 60% do uso de água em produtos finais de todo o grupo até o ano de 2020 – comparados com os de 2005. Agora, basta aguardar que venham os próximos passos da beleza limpa.
Entenda a diferença
Veganos
Trata-se de produtos que não utilizam matérias-primas de origem animal – o que é diferente de cruelty free. “Um cosmético vegano não é, necessariamente, natural ou orgânico. Ele pode ser inteiramente sintético e, ainda assim, vegano”, explica Patricia Lima.
Cruelty Free
Em português, quer dizer “sem crueldade”. Os produtos dessa categoria não realizam testes em animais. Todavia, isso não significa que não haja matérias-primas provenientes de origem animal em sua composição. Ou seja, é possível ser cruelty-free, sem ser vegano.
Naturais
Devem possuir, no mínimo, 95% de suas matérias-primas de origem natural. Os demais 5% podem ser orgânicos ou sintéticos e não devem ter em sua fórmula qualquer ingrediente de origem animal.
Orgânicos
São desenvolvidos e formulados sem prejudicar a natureza e com ingredientes naturais e livres de pesticidas. Devem possuir, no mínimo, 95% das suas matérias-primas certificadas
como orgânicas, e os 5% restantes podem ser compostos por água e/ou matérias-primas vegetais.