Beleza

Querido corpo: mulheres posam nuas e falam sobre seus processos de aceitação corporal

“… você foi o primogênito de um útero que tinha 17 anos e gerou mais dez corpos. Aos 8 anos, descobrimos que você era negro e que existe uma cultura de ódio a isso. Passamos dias chorando, sem querer ir à escola e até tentamos fazer você mudar de cor, mas nada adiantou. Até os 12 você foi violentado sexualmente. Sentimos culpa e nos livramos dela ao lermos a história de Dandara, que foi uma guerreira negra. Mudamos nosso nome, postura e paramos de aceitar a maldade externa como se a merecêssemos. Com a chegada da cultura e da arte em nossas vidas, ganhamos força para superar o preconceito e os traumas. Fizemos dois abortos, que nos levaram a uma sabatina de ideologias sem fundamento. A experiência nos deixou mais fortes para militarmos a favor das causas das mulheres. Um tempo depois conhecemos o Candomblé, que curou as feridas mais profundas. O mergulho na religião nos fez entender que somos nobres, carregamos um legado e uma história milenar. Então nasceu o Vaca Profana: um bloco carnavalesco feminista que junta centenas de mulheres com os seios nus. Ensinamos para a sociedade que a decisão de mostrar nossos corpos ou não é nossa. Mas, não esquecemos de todas as vezes que nos chamaram de macaca, feia e nem da existência de um padrão estético excludente. Quando nos mudamos para São Paulo, no ano passado, recebemos um diagnóstico errado de câncer cerebral. Justo quando comecei a me sentir em casa dentro de você, iria morrer? A proximidade com a morte nos aproximou dos amigos, amores e vimos que não estamos sozinhos. A doença, no fim, não existia. Hoje, Corpo, eu desejo a você muito prazer, orgasmos múltiplos, um pouco mais de exercício físico e tudo o que houver de bom. Mas o meu maior desejo é que nós estejamos sempre no equilíbrio positivo para vencer as adversidades. Ser feliz e realizada com um corpo fora dos padrões nunca será fácil. Mas jamais – jamais! – será impossível!”

Lucia Mendes – 38 anos designer e diretora de arte (Foto: Coletivo Amapoa)

“… na infância, adotamos o cabelo joãozinho por praticidade – o que aumentou a familiaridade com o mundo masculino. Não te encaixava em categorias: nem menino, nem menina. Isso nos libertou das paranoias de padrão.

Depois de uma tentativa frustrada de depilação, os pelos ficaram. Por causa da canela grossa, calças foram mandatórias até bem pouco tempo atrás.

O corpo magro se modificou com o tempo e a gravidez inesperada aos 29 anos. Lembra? Sempre soube que você tinha a inteligência para parir. Apesar dos contratempos, que resultaram na transferência do parto em casa para o hospital, você foi magistral! A amamentação foi plena e em qualquer lugar privado ou público.

Aos 35 anos, o nódulo no peito, que a ginecologista ignorou por muitos anos, na verdade era um câncer invasivo. É curioso pensar que a falta de vaidade que nos foi imputada negativamente ajudou nesse processo. Não teve depressão e perder o cabelo não foi um problema.

Durante a quimioterapia, você ficou esverdeado, inchado e esquisito. Soube desligar a dor, mas levou também o prazer. Dúvidas surgiram sobre como proceder após a retirada do seio. Escolhemos deixar um balão expansor embaixo da pele, que seria inflado com o passar do tempo, visando a uma reconstrução. Tentarei fugir pra sempre desse processo. As opções são tão agressivas que me arrependo de não ter apenas retirado o câncer e o peito afetado. Agora é tarde, já temos a prótese e retirá-la seria ter mais agressão e dor. Não, obrigada. Está tudo pronto e cicatrizado neste corpo que nunca foi perfeito e que cresce com o tempo, mas, no fundo, ainda é o mesmo que, desde 1980, reveste luz.”

Uni Correa – 29 anos produtora e transexual (Foto: Coletivo Amapoa)

“… já passamos por muitas coisas juntas e percebemos bem cedo que tudo o que nos acontecesse, para o bem ou para o mal, traria conhecimento – e isso é lindo. Aos 8 anos, percebi que o mundo também te via diferente, mas não nos aceitava. A mudança de escola na infância foi fatídica. Nosso nome de batismo sendo dito pela professora, nossa mão se levantando de forma pura e os novos coleguinhas dando risada sem saberem o que acontecia nos fez entender tudo: sempre fomos menina e o mundo sabia disso, só não tolerava. Nós só não imaginávamos que lutar por essa aceitação seria tão intenso. Aos 17 anos, fizemos tudo o que pudemos. Não fique triste pelas desistências, corpo. Você foi incrível! Nós já nos aceitávamos, mas o mundo ainda não. Nossa percepção e coragem se afloraram quando saímos da casa dos nossos pais e escolhemos um novo lar como símbolo de liberdade – de mente e corpo, mesmo que inconscientemente. A gente tinha muita raiva também porque enxergava os privilégios dos outros e nos perguntávamos porque não os tínhamos também. Era tudo tão injusto! Aos 26 percebemos que podíamos fazer a diferença e nos inserimos no mercado de trabalho: orgulhosas dos nossos princípios, formatos e sex appeal –, conhecendo por completo nossas limitações e avanços. Foi quando entendemos que aquelas meninas iguais a você, que usavam seus corpos como ferramenta de sobrevivência, o tinham como única saída e passamos a lutar por elas. Lutamos para que elas escolhessem seus caminhos e não os tivessem impostos. Querido corpo, tudo o que sofremos nos fortaleceu, e hoje você é forte como nossa mente sempre foi.”

Bia Gremion – 21 anos modelo e ativista do movimento Body Positive (Foto: Coletivo Amapoa)

“… hoje estamos bem, mas nem sempre foi assim, né? Já nos desentendemos muito, já te tratei muito mal. Me desculpa. Não deve ter sido fácil ser submetido a tantas dietas restritivas.

Corpo, não era apenas a minha mãe que me dizia que não era bom ter você, mas uma sociedade que está doente e repleta de profissionais que dizem que não é uma questão de estética, mas de saúde. E o que você acha que uma menina de 8 anos pode pensar quando todo mundo diz que ela é inadequada e que só é possível ter sucesso e felicidade se ela não tivesse você?
Desejei ser magra como as outras crianças para ser aceita por minha família e amigos.

Passamos por períodos problemáticos – lembra da adolescência? Fiquei tão triste com você que nos trancava em casa. Perto da idade adulta, pensei em acabar com você de vez e recorrer a uma cirurgia. Inutilizar um pedaço do estômago e deixar de absorver algumas vitaminas para o resto da vida, perder cabelo e talvez morrer. Fiquei na dúvida, afinal existem muitas histórias terríveis por aí.

Os anos passaram e a nossa relação melhorou. Comecei a gostar de você e a te querer por perto. Entendi que não preciso entrar em uma roupa ou caber nas poltronas de transportes públicos, mas isso tudo que tem de servir em mim. Aprendi com o movimento de gordoativismo que você é o que há de mais importante e que é maravilhoso amá-lo. Aprendi que gorda não é xingamento. Ser gorda e mulher é lindo e um ato político de resistência. Hoje nós somos felizes e realizados. Adoro colocar você na rua, na praia, nas redes sociais e mostrar todo dia que a sociedade tem de nos engolir, sim!”

Wilaize Morais – 27 anos head de relacionamento do coletivo MECA (Foto: Coletivo Amapoa)

“… negro, maravilhoso, de 1,83 metro, cabelos deslumbrantes e olhar grande e curioso: sobrevivemos.

Não nos tornamos modelo profissional, não viramos jogadora de basquete, não passamos o carnaval na avenida, mas, sim, na rua vestindo maiô. Aprendemos a nos sentir, nos entender, nos aceitar. Aprendemos que gostamos mais de calor e sol, que calça jeans larga é melhor do que apertada, que a nossa bunda é grande e só quando a gente se esforça muito a nossa barriga fica definida. Aceitamos que sempre seremos maior do que todas as mulheres da sala – talvez maior do que todos os homens também. E tudo bem! Hoje a gente ama muito isso. Amamos a cor da nossa pele, o formato do nosso nariz e até os nossos pés, maiores que os da maioria e que, por isso, durante muitos anos nos privou de ter calçados confortáveis. Aprendemos juntos que força e feminilidade andam de mãos dadas, sim. Aprendemos que homem nenhum nos tocará de novo sem que a gente queira. Honramos nossa independência, nossa garra, nosso formato e nossos movimentos, que gritam. Somos esse majestoso corpo negro! Ocupamos cada centímetro da nossa forma e amamos cada dia mais o impacto da nossa existência. Querido corpo: resistimos.”

Alexandra Gurgel – 29 anos youtuber e autora do livro Pare de se odiar (Foto: Coletivo Amapoa)

“… é estranho te chamar assim porque passei 26 anos desejando que você fosse diferente. Fiz dietas malucas, tive transtornos alimentares, tomei laxantes e diuréticos para “secar”, fiz lipoescultura, enxertei gordura, coloquei silicone… Busquei solucionar insatisfações gerando mais infelicidade e quis a todo custo que você fosse ‘perfeito’ para começarmos a viver. Até te matar eu tentei e só não consegui por ter sido socorrida. Eu te odiava profundamente. Depois de 26 anos internalizando esse ódio e deixando de fazer as coisas, encontrei o feminismo, que me fez entender a sociedade em que vivemos, o contexto em que estamos e, cara, o porquê de passarmos por tantas coisas. O feminismo me levou até você e logo descobri o que era gordofobia, pressão estética e conheci o body positive. Pouco a pouco comecei a te tratar de outra forma: te fiz carinho, te toquei, te beijei, te afaguei. Olhei pra você no espelho e, observando cada parte, parei de te ignorar, consegui me sentir em casa dentro de você. Parei de fazer dietas, parei de tentar te encaixar em um padrão e te libertei das amarras. Pude te conhecer, entender como você se alimenta, achei as estrias lindas, me acostumei com o seu formato e tamanho e, mais do que isso, te achei bonito. Quando percebi, já estava com o braço tatuado de fora, usando biquíni na praia, curtindo. Vou passar a vida toda aqui com você, envelhecendo, aprendendo, evoluindo. Agora sim. Querido corpo, parei de te odiar e aprendi a te amar. Por isso, você é meu corpo perfeito e o meu lar. E amo estar em casa.”

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